sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Sistema de proteção social

Inicialmente, creio ser interessante abordar a questão através de uma perspectiva generalizante. Não existe sociedade humana que não tenha desenvolvido algum sistema de proteção social. A abundante literatura antropológica, etnográfica, sociológica, a historiografia das sociedades antiga, moderna e contemporânea, demonstram e registram formas de solidariedade social que, atuando de modo extremamente rústico ou com altos níveis de sofisticação organizacional, têm percorrido, no tempo e no espaço, os grupos sociais, como um processo recorrente e universal. Assim, esta proteção tem sido exercida por instituições não-especializadas e plurifuncionais (como a família, por exemplo), ou então, nas sociedades mais complexas, através de sistemas específicos que se inscrevem como ramos importantes da divisão social do trabalho. Se no primeiro caso tais funções não são imediatamente aparentes, mesclando-se com outras de igual relevância social, no segundo, ganham especialização e visibilidade, constituindo-se num dos pontos centrais da vida coletiva. Pensar estes sistemas a partir de uma perspectiva teórico-sistemática não significa tratá-los como uma realidade a-histórica. Pelo contrário, significa abrir a possibilidade de, através da localização e identificação de gêneros e espécies, captá-los na sua complexidade, historicidade e particularidade, revelando sua diferença específica e aquilo que determinou sua forma particular. Assim, chamo de sistemas de proteção social as formas – às vezes mais, às vezes menos institucionalizadas – que as sociedades constituem para proteger parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de certas vicissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença, o infortúnio e as privações. Incluo neste conceito, também tanto as formas seletivas de distribuição e redistribuição de bens materiais (como a comida e o dinheiro), quanto de bens culturais (como os saberes), que permitirão a sobrevivência e a integração, sob várias formas, na vida social. Incluo, ainda, os princípios reguladores e as normas que, com intuito de proteção, fazem parte da vida das coletividades. Isto significa que as sociedades sempre alocaram recursos e esforços em suas atividades de proteção social. Certamente, as formas e os modos de alocação variam de um grupo social para outro, segundo critérios históricos e culturais, mas que sempre incluem, implícita ou explicitamente, uma dimensão de poder. Podemos dizer que tais critérios de alocação seguem basicamente três modalidades, que não são excludentes: a tradição, a troca e a autoridade. O critério da tradição envolve um conjunto de valores tais como a caridade, a fraternidade, a solidariedade etc. A troca está referida a um conjunto de práticas econômicas que perpassam desde relações face a face, até a impessoalidade das forças de mercado. Enfim, a modalidade política de alocação, que, no mundo moderno, está configurada de forma mais nítida, na presença do Estado como gestor, regulador e mesmo como produtor de tais relações. Certamente, face a estas modalidades de critérios não se pode adotar uma postura evolucionista, que conduziria a uma interpretação errônea dos sistemas de proteção social. Em primeiro lugar, porque as interpretações de caráter “finalista” já estão suficientemente criticadas na ciência social. Em segundo lugar, porque não existe registro histórico do desaparecimento de nenhuma das três modalidades apontadas, embora se possa constatar a predominância de uma delas em certos períodos históricos. A regularidade tem sido, entretanto, a convivência de critérios, ainda que de modo relativamente desequilibrado. Os sistemas de proteção social que ganharam maior importância foram aqueles desenvolvidos nas sociedades capitalistas européias, especialmente a partir das últimas três décadas do século passado e que deram base aos sistemas de seguridade social verificados em todas as sociedades complexas da atualidade. O traço mais marcante e fundamental destas configurações é o fato de serem implantados e geridos pelo Estado. Segundo Cella (1985: 266), seu desenvolvimento “na experiência deste século nas democracias industriais pode ser considerado de modo eficaz sob o ponto de vista da expansão dos critérios de alocação política, um tipo de alocação que se coloca ao lado, para depois substituí-los, dos tipos de alocação dominantes nas sociedades fundadas nos princípios do individualismo liberal: aqueles derivados sobretudo do funcionamento do mercado concorrencial, mas também ligados aos valores de solidariedade herdados da sociedade pré-industrial.” A alocação de recursos sociais que se dá através do Estado resulta de complexas relações macropolíticas travadas no plano do poder público envolvendo, além das principais instituições do Estado (como governo e parlamento), outras instituições e grupos (tais como classes sociais, partidos políticos, sindicatos). Tal conjunto de relações poderia ser localizado, com finalidades analíticas, no campo da Política. A ação de Estado resultaria de jogos e embates sobre o montante, a forma e o destino dos recursos sociais. Assumida pelo Estado (e reconhecida pela sociedade) como função legal e legítima, a proteção social se institucionaliza e toma formas concretas através de políticas de caráter social. É importante frisar que estas políticas integram um campo próprio de relações que envolvem, além da participação de instituições especializadas, outros agentes e processos extremamente complexos, sempre permeados pela incerteza. Não refletem, pois, necessariamente, um consenso final entre as forças e agentes sociais envolvidos. Ou, nas palavras de Regonini (1985): “um desenho orgânico de meios e fins, nem ao menos um ponto de equilíbrio entre forças contrastantes, ou uma síntese de funções de utilidade.” Embora o campo das políticas possa parecer relativamente autônomo do campo da Política, na prática guardam relações de intercâmbio e interpenetração. Desta forma, a proteção social exercida através do Estado é socialmente assumida como função do poder público e representa a existência de um conjunto de garantias, mais ou menos extensas, através de intervenção política e administrativa. Mas, a existência e a constituição de sistemas de proteção desta natureza não excluem a persistência ou a constituição de outras formas de proteção, privadas, nas quais o alcance dos mesmos objetivos está confiado a acordos entre sujeitos, seja na base de relações mercantis ou fundada em vínculos tradicionais. Embora predominantemente nas sociedades contemporâneas, os sistemas públicos de proteção social, assentados sobre critérios de alocação política, convivam com outros sistemas de presença mais ou menos marcada, mantendo também níveis diversos de interação com estes sistemas mercantis ou não-mercantis. A função de proteção exercida pelo Estado, no entanto, modelam-se institucionalmente, por meio de políticas públicas com o intuito de definir e executar medidas de caráter prescritivo, normativo e operativo, exercendo um poder de eleger e discriminar escolhas, objetivos e grupos de destino, sempre através de um complexo relacionamento com outros agentes e forças envolvidas. Assim sendo, pode-se encontrar nas sociedades contemporâneas, ao lado de um complexo institucional público altamente especializado, outros tipos de sistemas de proteção social, organizados em diversos graus de mercantilização, que atuam ou nas fronteiras dos sistemas oficiais, de modo subsidiário e complementar, ou ainda de modo coordenado, com diferentes graus de interação e compatibilidade com as funções estatais de proteção. No último século, os sistemas de proteção social se estruturaram de modo diverso e específico, seja do ponto de vista das formas de organização desenvolvidas no setor público, da constituição e presença dos sistemas privados, e também da interação entre estas áreas. A modelagem destes sistemas – variando quanto à centralidade ou fragmentação institucional, à participação do Estado ou do setor privado, quanto a uma ação substantiva ou residual e mesmo à generosidade das prestações –, pode ser atribuída, como faz Ferrera (1993), a três ordens de macrofatores: • a estrutura de classes e a distribuição de riscos (velhice, doença, desemprego etc.) no interior das várias categorias sociais, também em relação com a dinâmica ocupacional e demográfica. • a constelação de clivagens existente em um dado país e a correspondente estrutura de seu sistema partidário, que modelou os vínculos e as oportunidades políticas de posicionamento e aliança entre os atores, dando-lhes os parâmetros para avaliar quais coalizões reformistas eram praticáveis/convenientes. • o ambiente da política pública, ou seja, um conjunto de fatores organizativos e culturais entre os quais o arranjo institucional herdado do passado e seus problemas de funcionamento, assim como os estímulos fornecidos por exemplos estrangeiros e por idéias circulantes na agenda de políticas nacional e internacional. Ao lado destes macrofatores que Ferrera apresenta como estando na base do desenvolvimento dos sistemas caracterizados como Welfare State, poderíamos acrescentar, se quisermos nos referir às suas origens, os graves problemas sociais vividos na Europa do século passado, as lutas sociais travadas em função disto, bem como a capacidade de mobilização tanto das classes sociais submetidas aos riscos maiores, quanto das elites dirigentes em sua resposta (às vezes preventiva) à crise social. As origens dos modernos sistemas de proteção social As idéias aqui expostas sobre as origens dos modernos sistemas de proteção social serão baseadas em dois trabalhos reconhecidos como os melhores e mais completos tratamentos dados ao estudo do Welfare State. São eles: Da caridade ao estado social, de Jean Alber, e O desenvolvimento do Welfare State na Europa e na América, de Peter Flora e Arnold J. Heidenheimer, publicados pela editora italiana Il Mulino; em 1987 e 1981, respectivamente. A partir da segunda metade do século passado, começou a ganhar corpo nos países europeus uma tendência que se tornaria quase universal no século XX. Trata-se da presença do Estado como organizador, produtor, gestor e normatizador dos sistemas de proteção social. Certamente, esta tendência se corporificaria ganhando matizes adaptadas às condições políticas, econômicas e socioculturais vigentes nos diferentes países, mas o fato inexorável é que o Estado (ou os Estados) passou a assumir, com maior ou menor ênfase, as funções acima mencionadas. Entretanto, assinaladas as diferenças temporais, políticas e institucionais, pode-se dizer que os sistemas estatais que configuram a modalidade política de alocação dos recursos sociais responderam à crescente incapacidade do mercado de regular as relações econômicas, especialmente aquelas mais carregadas de implicações sociais. Na Europa, o século XIX foi caracterizado por conflitos sociais. Inicialmente na Inglaterra e depois nos outros países europeus, os processos de industrialização e urbanização, trouxeram o agravamento dos problemas ligados à pobreza (até então relativamente controlados). As péssimas condições de trabalho vigentes entre a massa proletária que se constituía, o infortúnio, os acidentes, as doenças profissionais e o desemprego tornavam-se cada vez mais evidentes. A conjugação de todos estes fatores – aliada à crescente organização das classes trabalhadoras através de sindicatos, a constituição de partidos políticos de inspiração socialista, comunista ou laborista, no bojo da expansão dos direitos políticos – evidenciaria, no plano das visões de mundo de então, que a pobreza não era uma decorrência dos méritos (ou deméritos) e performances pessoais, mas um fenômeno ligado a uma relação muito estreita com as condições sociais de vida e, particularmente, de trabalho. Ou pelo menos, que se estava diante de um outro tipo de pobreza: não aquela dos párias, dos loucos e doentes, mas a pobreza paradoxal daqueles que trabalhavam. Até os últimos vinte anos daquele século, “a assistência aos pobres se baseava em intervenções ocasionais, residuais e discrecionais, que eram consideradas como ‘benemerências’ que se concedia a pessoas quase sempre consideradas sem mérito e, assim sendo, comportavam marginalização política e civil dos beneficiários; enfim, a distribuição da assistência era feita segundo modalidades institucionais indiferenciadas e sobre base prevalentemente local” (Ferrera, 1984). Mas as origens, e, por que não dizer, a pré-história dos sistemas previdenciários são ainda mais remotas. Os regulamentos das corporações medievais já incluíam alguma espécie de proteção, e também as associações de aprendizes previam a assistência a seus membros em casos de doença e na procura de trabalho, havendo mesmo uma espécie de indenização às famílias, em caso de morte. Posteriormente, no período absolutista, as poucas instituições existentes passaram para o controle do Estado, mas, não foram abolidas. Na história dos sistemas de proteção social, a Inglaterra sempre desempenhou um papel pioneiro e, já em 1573, introduziu uma taxa sobre a propriedade fundiária, utilizada para um sistema local de assistência aos pobres, sob o controle do Estado. Mais tarde, em 1793, foram regulamentadas as atividades das associações de mútuo socorro que, no século seguinte, disseminar-se-iam por toda a Europa, especialmente na Holanda, Suíça, Bélgica, França, Dinamarca e Suécia. Com exceção da Bélgica, França, Itália e Holanda, todos os países europeus fizeram emanar disposições de lei que contemplavam assistência pública obrigatória aos pobres (Alber, 1982). Ao lado destas medidas, os países europeus foram codificando sistemas de proteção social, de natureza variada, que cobriam parte de seus habitantes (creio que neste período não se pode ainda falar em cidadãos), seja através de grupos específicos, voluntários ou compulsórios – como por exemplo os empregados assistidos por seus patrões –, seja por meio de uma assistência àqueles considerados de qualquer forma inabilitados diante dos padrões culturais de avaliação da capacidade produtiva das pessoas. Quanto a este último ponto, deve ser observado que a assistência aos pobres “por quase todo o século XIX permaneceu acompanhada de medidas disciplinares repressivas que, embora temporariamente atenuadas nos últimos vinte anos do século XVIII, não foram, todavia, abolidas. O empenho do poder público não se limitava a assistir os pobres inabilitados para o trabalho, mas providenciava também que aqueles habilitados ou então em situação de miséria por culpa própria fossem obrigados a retornar ao trabalho. O controle da pobreza era adjudicado a uma espécie de polícia dos pobres. Os ociosos e mendigos eram internados em casas de trabalho e correção” (Alber, 1982). E todas estas situações eram associadas à perda de direitos civis. Zollner (citado por Alber) descreve estes procedimentos repressivos do Estado, no período entre os séculos XVI e XVIII, como uma ênfase de “política social negativa”, cuja intenção primordial era o controle dos pobres e a manutenção da ordem pública. A restauração pós-napoleônica reforçou as normas de controle, temporariamente atenuadas pelo absolutismo iluminado e pela Revolução Francesa. Mesmo porque o sistema de valores associados ao liberalismo emergente refutava a idéia de que a assistência aos inativos fosse um dever social. Somente na segunda metade do século XIX ocorre uma reforma de legislação sobre a pobreza, na qual gradualmente se abriga o controle repressivo, enquanto se acentua o direito individual à prestação. É durante este período que na Europa Ocidental têm origem os sistemas de segurança social, nos quais a forma originária de previdência coletiva – por intermédio do socorro mútuo e da obrigação de proteção a cargo dos patrões – e a assistência pública se fundavam, pela primeira vez, numa sociedade coletiva eficaz (Alber, 1982). No mesmo texto, Alber indica ainda que, no final do século passado, todos os Estados instituíram sistemas próprios segundo o princípio causal, ou seja, criando programas que se diferenciavam segundo a causa que estava na base da perda de rendimentos. De um modo geral, foram estabelecidos quatro sistemas: seguros contra acidentes, contra doenças, contra o desemprego e o sistema de aposentadorias, que incluiu a velhice, a invalidez e a morte do arrimo de família. Assim, antes da Primeira Guerra Mundial, quase todos os países europeus já dispunham de pelo menos três sistemas, com muito poucas exceções. Quais são as diferenças entre estes sistemas nascidos entre 1885 e 1915 e os sistemas precedentes? Ainda com Alber (1982) podemos descrevê-las: • trata-se de sistemas regulados por normas nacionais; • as prestações por eles distribuídas com o objetivo de garantir rendimentos cobririam riscos padronizados tais como acidentes, doenças, velhice, morte ou desocupação dos segurados; • seu campo de aplicação não foi limitado a categorias profissionais isoladas, mas dependiam de critérios mais gerais de rendimento ou status ocupacional que consentiam, como norma, a cobertura de faixas mais amplas de pessoas; • sua natureza foi obrigatória, o que implicou a imposição de seguro para determinados grupos, ou ainda, a obrigação dos poderes públicos financiarem programas voluntários; • seu financiamento ficou a cargo, além dos segurados, do Estado ou dos patrões, e em muitos casos, do Estado e dos patrões; • reconheceram o direito subjetivo individual às prestações e sua fruição não comportou nenhuma discriminação política. O período imediatamente anterior a estas transformações radicais no âmbito dos sistemas de proteção social foi marcado por alguns processos de grande importância: o crescimento demográfico e a industrialização que tiveram grande impacto nas condições de vida no período, especialmente para as classes trabalhadoras. Quanto à questão demográfica, basta dizer que, ao atingir seu auge, na segunda metade do século XIX, num período variando entre 50 e 80 anos, em quase todos os países da Europa Central, a população duplicou. O superpovoamento dos campos teria como contrapartida a migração para as cidades. No final do século, a concentração urbana atingiria 25% em todo o continente. Isto significou uma revolução nas necessidades de segurança das populações citadinas. Em primeiro lugar, tornando crônicos e agravados os chamados problemas urbanos, tais como saneamento, higiene etc. Em segundo lugar – e isto é de extrema importância – abriu-se espaço para uma nova forma de sociabilidade, impessoal e desarraigada das instituições tradicionais, como a família, a vizinhança, os laços corporativos. Gerou-se, portanto, uma grande debilidade nos vínculos de proteção social vigentes até então. Desmoronavam-se o parentesco e a assistência mútua, típicas das pequenas comunidades rurais. Tais mecanismos de solidariedade social desapareceram no meio urbano onde a perda do emprego e dos rendimentos se constituía em dramáticas situações de pobreza e desamparo. Haveria outros problemas, referidos à própria natureza do processo de industrialização, que se juntariam aos já apresentados. Em primeiro plano, cabe ressaltar aqueles decorrentes da própria natureza do trabalho industrial, diversa dos processos dominantes anteriormente, como o trabalho agrícola e artesanal. A introdução de técnicas mecanizadas, substituindo as atividades manuais, faria com que os riscos de acidentes aumentassem demais, expondo os acidentados ao desemprego, à invalidez e, sempre, à perda de rendimentos. Depois, as formas vigentes de utilização intensiva da força de trabalho, com a aceleração dos ritmos e a máxima utilização do tempo, com poucas jornadas de repouso, aumentavam as chances de um exaurimento precoce das capacidades individuais de trabalho. Além disso, deve ser mencionado o surgimento de inúmeras doenças profissionais que contribuíam para esta exaustão, gerando, paralelamente, a perda parcial ou total da capacidade laborativa. Embora no período fossem encontradas normas de proteção ao trabalhador, estava muito agravada a situação das famílias operárias, que diante de todas estas vicissitudes não poderiam contar senão com as poucas chances de proteção que, na maior parte dos casos, não iam além da pessoa do trabalhador. Também, a natureza jurídica dos contratos de trabalho sob o capitalismo revelava um dos traços mais problemáticos das novas formas de sociabilidade, fundadas nas relações individuais: à instabilidade no emprego, causada pelas oscilações dos mercados, juntava-se a questão dos níveis salariais, que muitas vezes não faziam frente às necessidades básicas do trabalhador e de sua família. Todos estes pontos conformariam aquilo que foi chamado de “questão social”, numa clara eferência à consciência coletiva que não mais atribuía tal situação aos desempenhos individuais, mas se referia e constatava a gravidade dos problemas emergentes do novo quadro econômico-social. Também a democratização do direito de voto faria que as necessidades das classes trabalhadoras, sempre relativas à sua segurança social se tornassem uma questão política central neste contexto. Com pequenas restrições de pouca relevância, o direito de voto já estava generalizado por toda a Europa antes da Primeira Guerra Mundial. Assim sendo, e assinaladas as diferenças nacionais e temporais da constituição dos direitos políticos, do processo de desenvolvimento econômico e dos processos de modernização verificados, pode-se dizer que – no caso da montagem dos vários sistemas de proteção social europeus – a variável historicamente crucial foi a mobilização dos trabalhadores em relação com os contextos político-institucionais circunstantes (Ferrera, 1984). Seja no plano da constituição e consolidação dos movimentos sindicais, seja no plano da constituição e crescimento dos partidos operários, esta organização está na base da criação de sistemas de seguros obrigatórios, embora, nos diferentes casos, tenha trilhado percursos diferentes. Neste caso, a combinação de princípios – às vezes contraditórios – de segurança e igualdade sociais foi feita através de processos político-sociais de natureza própria, que foram na literatura relacionados à existência de regimes parlamentares, à limitação do sufrágio, à presença de monarquias constitucionais e ao surgimento de democracias de massa. A combinação destes fatores em torno daqueles princípios e das necessidades de segurança, da forma em que foram expressas nos diversos contextos, produziria sistemas diversos, mais ou menos integrados, mais ou menos planificados, com perfis burocráticos e institucionais próprios e com graus de generosidade e participação também diferenciados. Como pano de fundo deste contexto, estava uma mudança nos modelos de interpretação da realidade social, que passava a assentar-se sobre quatro fórmulas: secularização (laicização), racionalização, individualização e politização. Os momentos históricos da Reforma, do Iluminismo e da Revolução Francesa produziram importantes efeitos sobre as concepções e as formas de proteção social. No caso francês, a Constituição de 1793 já incluía um princípio, em virtude do qual “a sociedade é responsável pela manutenção de seus cidadãos desafortunados, aos quais deve prover trabalho ou conceder meios de subsistência, quando inabilitados.” Embora este princípio não tenha tido aplicação imediata, possibilitou uma capacidade de reinterpretação das relações sociais. Também o Estado passava a ser visto como representante da nação, e a ele era atribuída a tarefa de promover ativamente o bem-estar do cidadão: “Assim, a emergência social adquiria uma dimensão política” (Alber, 1982). Entretanto, nos primeiros anos do século XIX, a questão social ainda era vista como algo ligado ao desenvolvimento da economia, que poderia ser o fato gerador do bem-estar. Porém, gradativamente estes dois aspectos (desenvolvimento e bem-estar) foram se dissociando e a atenção passou, pouco a pouco, a se concentrar na segurança do rendimento das pessoas. Este foi o ponto de mobilização social e política dos trabalhadores. Na Grã-Bretanha, depois da instituição do direito de associação em 1824, as organizações sindicais tiveram sua expansão e, em 1868, já estavam unidas em uma federação nacional. Entre 1860 e 1880, o movimento sindical se estendeu a todo o continente, com uma gradativa mas persistente onda de crescimento desta forma de organização. No final do século já haviam conseguido a legalização do direito de greve, e a Europa vivia uma explosiva situação de conflitos de natureza industrial. Os últimos cinqüenta anos deste século viram o desenvolvimento e a expansão impetuosa e generalizada destes sistemas, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Depois deste evento, sem dúvida, houve grandes avanços nas formas de proteção e na qualidade desta proteção. Guardadas as diferenças, deve ser registrada a generalizada convergência dos níveis de proteção e solidariedade social ofertados pelos Welfare State europeus. Modelos de classificação Existe hoje uma rediscussão dos modelos de classificação dos Welfare State. Depois de um período de mais de vinte anos durante o qual reinou absoluta a classificação de R. Titmus, algumas propostas de alteração foram apresentadas. Inicialmente de modo tímido, mas não sem importância para o esforço classificatório, seriam dados passos importantes para a interpretação, especialmente para aqueles casos considerados “desviantes” face ao modelo inicial. A proposta de Titmus previa três gêneros de Welfare State: • Welfare State residual (The residual Welfare model), caracterizado por políticas seletivas, realizadas quase sempre a posteriori, quando os “canais naturais” e tradicionais de satisfação de necessidades não resolvessem determinadas carências e exigências dos indivíduos. A intervenção possuiria então um caráter temporalmente limitado e deveria cessar com a eliminação da carência social. As políticas desenvolvidas sob este modelo (seletivas) seriam sempre dirigidas a grupos sociais particulares e referidas a certos tipos de riscos ou privação. • Welfare State meritocrático-particularista (The industrial achievement performance model), que seria o modelo fundado nas capacidades individuais de performance, tais como as relativas à produtividade e à capacidade de ganhos individuais. Assim, as políticas sociais deveriam apenas interferir para a correção de certas falhas do mercado que, eventualmente, se tornassem obstáculo para os indivíduos resolverem suas necessidades. “Por importante que seja, o sistema de Welfare é tão somente complementar às instituições econômicas.” • Welfare State institucional redistributivo (The redistributive model). Neste modelo, por fora do mercado, estão garantidos a todos os cidadãos os direitos e as prestações relativas ao bem-estar em termos de patamares mínimos de renda ou serviços, sejam estatais, seja por meio de instituições com fundos repassados pelo Estado. Estudando o caso italiano, Ugo Ascoli avalia a contribuição de Titmus procurando adaptá-la para melhor enquadrar seu objeto e levanta a hipótese de que “o sistema italiano de Welfare, ainda que respeitando as principais diferenciações criadas no mercado e, portanto, aproximando-se do modelo meritocrático-particularista de Titmus, tende a subordinar os principais mecanismos públicos de distribuição de recursos à lógica clientelista inclusiva que parece regular o sistema político”. Aqui, Ascoli nos remete diretamente às práticas clientelistas do sistema político italiano e propõe, para o modelo em pauta, duas sub-espécies: a particularista clientelar e a particularista-corporativa. A classificação de Titmus baseia-se em duas grandes categorias de variáveis: de um lado, a relação Estado versus mercado (ou seja, o distanciamento entre as garantias e as prestações de Welfare e o mercado) e os grupos e os estratos destinatários destas garantias e prestações – se muitos, se poucos, se todos..., (Draibe & Aureliano, 1989). Ascoli, por sua vez, introduz, no caso do modelo meritocrático-particularista, outra variável que seria o modo pelo qual se distribuem garantias e prestações, dada uma certa fragmentação institucional que, por sua vez, estaria subordinada à lógica de uma dinâmica clientelista. Algumas das observações de Ascoli demonstram um certo esquematismo na proposta de Titmus, quanto ao seu poder explicativo. Outras observações também podem ser adicionadas: Por outro lado, o modo como, dicotomicamente apresenta-se nesta tipologia o duplo residual versus institucional, não permite captar os mix históricos em que comparecem diferentemente os pesos relativos do Estado, do mercado e do que vem sendo chamado de o ‘terceiro setor’ na organização mais geral da proteção social (...) Outro plano de discussão desta tipologia diz respeito à sua pequena capacidade de apreender as relações entre o perfil da proteção social e a dinâmica do sistema de interesses e do sistema político (Draibe & Aureliano, 1989). São críticas pertinentes. E a preocupação de Ascoli parece que vem na direção de, corretamente, incorporar estas variáveis na configuração institucional dos sistemas de Welfare. Tal como a operação analítica realizada por Ascoli, outras tentativas foram feitas no sentido de aumentar a capacidade explicativa do modelo de Titmus. Relatadas por Ferrera (1990), outros critérios foram introduzidos, num esforço de “sintonia fina”. Assim, critérios tais como a estabilidade e robustez dos direitos civis, a fragmentação social e institucional, a generosidade nas prestações, a estrutura das prestações e a presença do Estado (Stateness), foram utilizados para estudos de caso e para comparação, e obteve-se um relativo sucesso em termos de superação do esquematismo apontado, abrindo campo para que os outros sistemas fossem estudados e “enquadrados” com maior precisão. Aumentaram, assim, as chances positivas de comparação entre os diferentes modelos. Estas operações e novos estudos realizados possibilitaram o surgimento de subespécies nos modelos meritocrático-particularista e institucional-redistributivo. Sintetizados na Figura 4, estas inovações foram baseadas em novos critérios tais como: fragmentação social e institucional no interior dos sistemas, stateness (que indica a maior ou menor presença do Estado nos mecanismos de seleção e distribuição das prestações); e a generosidade e qualidade dos benefícios distribuídos. No que diz respeito aos critérios de fragmentação social e institucional, a maior ou menor presença de mecanismos políticos de captura de benefícios públicos e a natureza destes mecanismos possibilitaram identificar, no modelo B, como já vimos, duas subespécies: a clientelista e a corporativa. No que diz respeito a stateness, a presença maior ou menor do Estado na condução e definição de programas permitiu identificar uma subespécie de caráter marcadamente estatal-burocrático, como no caso de França e Alemanha, e outra com fortes fundamentos confessionais ou partidários na conformação dos sistemas de Welfare, como nos casos de Itália e Holanda, embora este último apresente características muito particulares. Tomando como critério a generosidade e a qualidade das prestações e serviços, no interior do modelo C, chegou-se a uma discriminação de outras subespécies diferenciadas pela, digamos, intensidade de seu universalismo (mínimo ou máximo). Ocorrerá, no caso inglês, um universalismo mínimo, uma vez que, dado um padrão de generosidade/qualidade, as prestações em nível mais elevado deveriam ser procuradas no mercado pelos próprios segurados, por meio de mecanismos de Professional Welfare, ou ainda dos ganhos permitidos por medidas de Fiscal Welfare. Noutro pólo desta distinção, num padrão de universalismo máximo, estariam os países escandinavos, onde se verifica um elevado padrão de qualidade e generosidade nas prestações públicas, evitando qualquer tipo de dualismo no sistema de Welfare. Isolou-se assim uma subespécie “britânica”, oposta a outra, “escandinava”, no interior do modelo C. Todas estas contribuições parecem ter aumentado o poder classificatório da proposta de Titmus e isto se deve à multiplicação dos estudos comparados no campo do Welfare State. Mas a pesquisa e a proposição de novos modelos não se esgotariam por aqui. Em 1990, G. Esping-Andersen apresentou em seu livro The three worlds of Welfare capitalism uma tipologia dos diversos regimes de política social, com o intuito de acomodar, comparativamente, em clusters (grupos relativamente homogêneos) bem identificados, todos os países da OCDE. Reconhecendo a dificuldade das classificações puras e definitivas – daí a idéia de clusters – este autor propôs os seguintes agrupamentos: liberal, conservador-corporativo e social-democrata. No primeiro, a hegemonia social da burguesia empresarial e a predominância dos valores liberais centrados na iniciativa privada e na ética do trabalho obstacularizaram o reformismo social e encorajaram soluções mercantis também como resposta às necessidades de proteção.” “No agrupamento conservador-corporativo, a hegemonia burguesa vem conjugada à tradição estatalista, à doutrina social da igreja e à articulação por categorias do corpo social, promovendo a expansão de programas generosos, com efeitos redistributivos negligenciados. No terceiro regime (social-democrata) finalmente, a hegemonia social-democrata produziu a expansão de um Welfare State apoiado na intervenção pública em substituição tanto do mercado quanto da família, e dirigido à promoção de uma igualdade de padrões mais elevados; garantindo a toda a população o acesso a prestações de bens e serviços de alta qualidade e alto nível. Enquanto no primeiro regime as classes médias ficam fora do sistema (uma vez que este se dirige apenas a grupos em situação de riscos comprovados, means tested), no segundo têm direito a prestações diferenciadas de melhor nível; no regime social-democrata estas são incorporadas internamente ao esquema universal que distribui a todos as mesmas prestações (Ferrera, 1992). O critério fundamental de agrupamento utilizado por Esping-Andersen é o do grau de desmercantilização, ou seja, a medida em que os sistemas subtraem o trabalhador/cidadão da dependência do mercado. Os países e clusters estariam dispostos em um continuum de desmercantilização que seria baixa no modelo liberal, intermediária no conservador-corporativo e alta no social-democrata. Além do critério de desmercantilização o autor emprega um segundo critério empírico chamado de “princípio de estratificação” no qual seis atributos político-sociais dos sistemas de Welfare são combinados: • grau de corporativismo (fragmentação institucional do sistema); • grau de “estatalismo” (percentual das despesas para prestações aos empregados públicos); • grau de residualismo (percentual das despesas para means tested); • grau de privatização (percentual da despesa privada para aposentadoria, pensões e saúde); • grau de universalismo (percentual da população assegurada nos sistemas existentes); • diferencial de prestações (amplitude de variação entre as prestações mínima e máxima possíveis). Em suma, não há um e sim vários arranjos possíveis de Welfare State, que se configuraram a partir de circunstâncias históricas e lutas políticas particulares a cada nação. De qualquer modo, os critérios de classificação e avaliação dos sistemas de proteção social visam explicitar limites e virtudes dos vários modelos, assim como permitir uma comparação entre eles. Além disso, pode-se associar arranjos particulares com matrizes político-ideológicas claramente distintas, o que em última instância conduz à constatação de que os sistemas de proteção social são produtos e, ao mesmo tempo, elementos estruturantes da vida social moderna.

4 comentários:

Anónimo disse...

Di Giovanni,

Li o seu texto sobre os Sistemas de Proteção Social e o que me resta, além de parabenizá-lo pela clareza de suas palavras - certamente bem ajustadas às suas idéias - e a astúcia com que passeou pela história descortinando o assunto a que se propôs escrever, é clamar pelo seu auxílio. Meu nome é Michel Mendonça Ribeiro, tenho 19 anos e sou estudante do Curso de Direito da Universidade Estadual de Santa Cruz-BA. Recentemente foi me passada a tarefa de fazer um seminário sobre os Sistemas de Proteção Social para a disciplina Ciência Política. No entanto, confesso que não sei por onde caminhar para realizar um excelente trabalho. Peço que, se puder, me ajude cedendo materiais e apontando os pontos que não posso deixar de explorar para esgotar o tema. Qualquer contribuição da sua parte será bem vinda através do meu e-mail: michel_mendoncar@hotmail.com

Desde já extemamente agradecido,

Michel Mendonça Ribiro

Anónimo disse...

Professor, antes de mais devo congratulá-lo, admitindo, desde já a sua total clarividência no que respeita o tema. Sou estudante do curso de Administração Pública na Universidade do Minho e, tal como, Michel, venho solicitar auxiliares informativos para a realização de um ensaio a propósito do tema «Modelos de Protecção Social na Europa do Sul» no âmbito de uma cadeira do curso já referido, Ciência Política.
Agradeço qualquer auxílio e faculto o meu mail para o envio de informação (carla_de_melo@sapo.pt)

Muitos Cumprimentos.
Carla de Melo.

Anónimo disse...

Sr. Di Giovanni


Sou estudante du Master 1 em Action Social na Université Bretagne Occidental - Brest - França. Estou com dificuldades na disciplina de politicas publicas, principalmente sobre o Sistema de proteção social francês. Meu professor, me orientou a buscar textos em portugês, porém não tive muito sucesso. O texto acima ja me ajudou, porém senhor poderia me indicar sites que explicam com clareza sobre o sistema francês de proteçao social??? Meu email: elaralima@bol.com.br. Muito obrigada.

Anónimo disse...

Olá professor,

Fiquei encantada com a clareza de seu texto. Sou estudante de Direito da UNIPE/PB, faço parte de uma pesquisa em Direito Econômico e quero fazer minha monografia relacionando as políticas públicas de proteção social,como o Bolsa Família, com o Direito Econômico. Estou estudando sobre o tema e peço-lhe,que se for possível, me envie materiais ou sites que possam me auxiliar nesse projeto. Meu email é rafaelapires87@hotmail.com. Obrigada, Rafaela Pires.