sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Sistema de proteção social

Inicialmente, creio ser interessante abordar a questão através de uma perspectiva generalizante. Não existe sociedade humana que não tenha desenvolvido algum sistema de proteção social. A abundante literatura antropológica, etnográfica, sociológica, a historiografia das sociedades antiga, moderna e contemporânea, demonstram e registram formas de solidariedade social que, atuando de modo extremamente rústico ou com altos níveis de sofisticação organizacional, têm percorrido, no tempo e no espaço, os grupos sociais, como um processo recorrente e universal. Assim, esta proteção tem sido exercida por instituições não-especializadas e plurifuncionais (como a família, por exemplo), ou então, nas sociedades mais complexas, através de sistemas específicos que se inscrevem como ramos importantes da divisão social do trabalho. Se no primeiro caso tais funções não são imediatamente aparentes, mesclando-se com outras de igual relevância social, no segundo, ganham especialização e visibilidade, constituindo-se num dos pontos centrais da vida coletiva. Pensar estes sistemas a partir de uma perspectiva teórico-sistemática não significa tratá-los como uma realidade a-histórica. Pelo contrário, significa abrir a possibilidade de, através da localização e identificação de gêneros e espécies, captá-los na sua complexidade, historicidade e particularidade, revelando sua diferença específica e aquilo que determinou sua forma particular. Assim, chamo de sistemas de proteção social as formas – às vezes mais, às vezes menos institucionalizadas – que as sociedades constituem para proteger parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de certas vicissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença, o infortúnio e as privações. Incluo neste conceito, também tanto as formas seletivas de distribuição e redistribuição de bens materiais (como a comida e o dinheiro), quanto de bens culturais (como os saberes), que permitirão a sobrevivência e a integração, sob várias formas, na vida social. Incluo, ainda, os princípios reguladores e as normas que, com intuito de proteção, fazem parte da vida das coletividades. Isto significa que as sociedades sempre alocaram recursos e esforços em suas atividades de proteção social. Certamente, as formas e os modos de alocação variam de um grupo social para outro, segundo critérios históricos e culturais, mas que sempre incluem, implícita ou explicitamente, uma dimensão de poder. Podemos dizer que tais critérios de alocação seguem basicamente três modalidades, que não são excludentes: a tradição, a troca e a autoridade. O critério da tradição envolve um conjunto de valores tais como a caridade, a fraternidade, a solidariedade etc. A troca está referida a um conjunto de práticas econômicas que perpassam desde relações face a face, até a impessoalidade das forças de mercado. Enfim, a modalidade política de alocação, que, no mundo moderno, está configurada de forma mais nítida, na presença do Estado como gestor, regulador e mesmo como produtor de tais relações. Certamente, face a estas modalidades de critérios não se pode adotar uma postura evolucionista, que conduziria a uma interpretação errônea dos sistemas de proteção social. Em primeiro lugar, porque as interpretações de caráter “finalista” já estão suficientemente criticadas na ciência social. Em segundo lugar, porque não existe registro histórico do desaparecimento de nenhuma das três modalidades apontadas, embora se possa constatar a predominância de uma delas em certos períodos históricos. A regularidade tem sido, entretanto, a convivência de critérios, ainda que de modo relativamente desequilibrado. Os sistemas de proteção social que ganharam maior importância foram aqueles desenvolvidos nas sociedades capitalistas européias, especialmente a partir das últimas três décadas do século passado e que deram base aos sistemas de seguridade social verificados em todas as sociedades complexas da atualidade. O traço mais marcante e fundamental destas configurações é o fato de serem implantados e geridos pelo Estado. Segundo Cella (1985: 266), seu desenvolvimento “na experiência deste século nas democracias industriais pode ser considerado de modo eficaz sob o ponto de vista da expansão dos critérios de alocação política, um tipo de alocação que se coloca ao lado, para depois substituí-los, dos tipos de alocação dominantes nas sociedades fundadas nos princípios do individualismo liberal: aqueles derivados sobretudo do funcionamento do mercado concorrencial, mas também ligados aos valores de solidariedade herdados da sociedade pré-industrial.” A alocação de recursos sociais que se dá através do Estado resulta de complexas relações macropolíticas travadas no plano do poder público envolvendo, além das principais instituições do Estado (como governo e parlamento), outras instituições e grupos (tais como classes sociais, partidos políticos, sindicatos). Tal conjunto de relações poderia ser localizado, com finalidades analíticas, no campo da Política. A ação de Estado resultaria de jogos e embates sobre o montante, a forma e o destino dos recursos sociais. Assumida pelo Estado (e reconhecida pela sociedade) como função legal e legítima, a proteção social se institucionaliza e toma formas concretas através de políticas de caráter social. É importante frisar que estas políticas integram um campo próprio de relações que envolvem, além da participação de instituições especializadas, outros agentes e processos extremamente complexos, sempre permeados pela incerteza. Não refletem, pois, necessariamente, um consenso final entre as forças e agentes sociais envolvidos. Ou, nas palavras de Regonini (1985): “um desenho orgânico de meios e fins, nem ao menos um ponto de equilíbrio entre forças contrastantes, ou uma síntese de funções de utilidade.” Embora o campo das políticas possa parecer relativamente autônomo do campo da Política, na prática guardam relações de intercâmbio e interpenetração. Desta forma, a proteção social exercida através do Estado é socialmente assumida como função do poder público e representa a existência de um conjunto de garantias, mais ou menos extensas, através de intervenção política e administrativa. Mas, a existência e a constituição de sistemas de proteção desta natureza não excluem a persistência ou a constituição de outras formas de proteção, privadas, nas quais o alcance dos mesmos objetivos está confiado a acordos entre sujeitos, seja na base de relações mercantis ou fundada em vínculos tradicionais. Embora predominantemente nas sociedades contemporâneas, os sistemas públicos de proteção social, assentados sobre critérios de alocação política, convivam com outros sistemas de presença mais ou menos marcada, mantendo também níveis diversos de interação com estes sistemas mercantis ou não-mercantis. A função de proteção exercida pelo Estado, no entanto, modelam-se institucionalmente, por meio de políticas públicas com o intuito de definir e executar medidas de caráter prescritivo, normativo e operativo, exercendo um poder de eleger e discriminar escolhas, objetivos e grupos de destino, sempre através de um complexo relacionamento com outros agentes e forças envolvidas. Assim sendo, pode-se encontrar nas sociedades contemporâneas, ao lado de um complexo institucional público altamente especializado, outros tipos de sistemas de proteção social, organizados em diversos graus de mercantilização, que atuam ou nas fronteiras dos sistemas oficiais, de modo subsidiário e complementar, ou ainda de modo coordenado, com diferentes graus de interação e compatibilidade com as funções estatais de proteção. No último século, os sistemas de proteção social se estruturaram de modo diverso e específico, seja do ponto de vista das formas de organização desenvolvidas no setor público, da constituição e presença dos sistemas privados, e também da interação entre estas áreas. A modelagem destes sistemas – variando quanto à centralidade ou fragmentação institucional, à participação do Estado ou do setor privado, quanto a uma ação substantiva ou residual e mesmo à generosidade das prestações –, pode ser atribuída, como faz Ferrera (1993), a três ordens de macrofatores: • a estrutura de classes e a distribuição de riscos (velhice, doença, desemprego etc.) no interior das várias categorias sociais, também em relação com a dinâmica ocupacional e demográfica. • a constelação de clivagens existente em um dado país e a correspondente estrutura de seu sistema partidário, que modelou os vínculos e as oportunidades políticas de posicionamento e aliança entre os atores, dando-lhes os parâmetros para avaliar quais coalizões reformistas eram praticáveis/convenientes. • o ambiente da política pública, ou seja, um conjunto de fatores organizativos e culturais entre os quais o arranjo institucional herdado do passado e seus problemas de funcionamento, assim como os estímulos fornecidos por exemplos estrangeiros e por idéias circulantes na agenda de políticas nacional e internacional. Ao lado destes macrofatores que Ferrera apresenta como estando na base do desenvolvimento dos sistemas caracterizados como Welfare State, poderíamos acrescentar, se quisermos nos referir às suas origens, os graves problemas sociais vividos na Europa do século passado, as lutas sociais travadas em função disto, bem como a capacidade de mobilização tanto das classes sociais submetidas aos riscos maiores, quanto das elites dirigentes em sua resposta (às vezes preventiva) à crise social. As origens dos modernos sistemas de proteção social As idéias aqui expostas sobre as origens dos modernos sistemas de proteção social serão baseadas em dois trabalhos reconhecidos como os melhores e mais completos tratamentos dados ao estudo do Welfare State. São eles: Da caridade ao estado social, de Jean Alber, e O desenvolvimento do Welfare State na Europa e na América, de Peter Flora e Arnold J. Heidenheimer, publicados pela editora italiana Il Mulino; em 1987 e 1981, respectivamente. A partir da segunda metade do século passado, começou a ganhar corpo nos países europeus uma tendência que se tornaria quase universal no século XX. Trata-se da presença do Estado como organizador, produtor, gestor e normatizador dos sistemas de proteção social. Certamente, esta tendência se corporificaria ganhando matizes adaptadas às condições políticas, econômicas e socioculturais vigentes nos diferentes países, mas o fato inexorável é que o Estado (ou os Estados) passou a assumir, com maior ou menor ênfase, as funções acima mencionadas. Entretanto, assinaladas as diferenças temporais, políticas e institucionais, pode-se dizer que os sistemas estatais que configuram a modalidade política de alocação dos recursos sociais responderam à crescente incapacidade do mercado de regular as relações econômicas, especialmente aquelas mais carregadas de implicações sociais. Na Europa, o século XIX foi caracterizado por conflitos sociais. Inicialmente na Inglaterra e depois nos outros países europeus, os processos de industrialização e urbanização, trouxeram o agravamento dos problemas ligados à pobreza (até então relativamente controlados). As péssimas condições de trabalho vigentes entre a massa proletária que se constituía, o infortúnio, os acidentes, as doenças profissionais e o desemprego tornavam-se cada vez mais evidentes. A conjugação de todos estes fatores – aliada à crescente organização das classes trabalhadoras através de sindicatos, a constituição de partidos políticos de inspiração socialista, comunista ou laborista, no bojo da expansão dos direitos políticos – evidenciaria, no plano das visões de mundo de então, que a pobreza não era uma decorrência dos méritos (ou deméritos) e performances pessoais, mas um fenômeno ligado a uma relação muito estreita com as condições sociais de vida e, particularmente, de trabalho. Ou pelo menos, que se estava diante de um outro tipo de pobreza: não aquela dos párias, dos loucos e doentes, mas a pobreza paradoxal daqueles que trabalhavam. Até os últimos vinte anos daquele século, “a assistência aos pobres se baseava em intervenções ocasionais, residuais e discrecionais, que eram consideradas como ‘benemerências’ que se concedia a pessoas quase sempre consideradas sem mérito e, assim sendo, comportavam marginalização política e civil dos beneficiários; enfim, a distribuição da assistência era feita segundo modalidades institucionais indiferenciadas e sobre base prevalentemente local” (Ferrera, 1984). Mas as origens, e, por que não dizer, a pré-história dos sistemas previdenciários são ainda mais remotas. Os regulamentos das corporações medievais já incluíam alguma espécie de proteção, e também as associações de aprendizes previam a assistência a seus membros em casos de doença e na procura de trabalho, havendo mesmo uma espécie de indenização às famílias, em caso de morte. Posteriormente, no período absolutista, as poucas instituições existentes passaram para o controle do Estado, mas, não foram abolidas. Na história dos sistemas de proteção social, a Inglaterra sempre desempenhou um papel pioneiro e, já em 1573, introduziu uma taxa sobre a propriedade fundiária, utilizada para um sistema local de assistência aos pobres, sob o controle do Estado. Mais tarde, em 1793, foram regulamentadas as atividades das associações de mútuo socorro que, no século seguinte, disseminar-se-iam por toda a Europa, especialmente na Holanda, Suíça, Bélgica, França, Dinamarca e Suécia. Com exceção da Bélgica, França, Itália e Holanda, todos os países europeus fizeram emanar disposições de lei que contemplavam assistência pública obrigatória aos pobres (Alber, 1982). Ao lado destas medidas, os países europeus foram codificando sistemas de proteção social, de natureza variada, que cobriam parte de seus habitantes (creio que neste período não se pode ainda falar em cidadãos), seja através de grupos específicos, voluntários ou compulsórios – como por exemplo os empregados assistidos por seus patrões –, seja por meio de uma assistência àqueles considerados de qualquer forma inabilitados diante dos padrões culturais de avaliação da capacidade produtiva das pessoas. Quanto a este último ponto, deve ser observado que a assistência aos pobres “por quase todo o século XIX permaneceu acompanhada de medidas disciplinares repressivas que, embora temporariamente atenuadas nos últimos vinte anos do século XVIII, não foram, todavia, abolidas. O empenho do poder público não se limitava a assistir os pobres inabilitados para o trabalho, mas providenciava também que aqueles habilitados ou então em situação de miséria por culpa própria fossem obrigados a retornar ao trabalho. O controle da pobreza era adjudicado a uma espécie de polícia dos pobres. Os ociosos e mendigos eram internados em casas de trabalho e correção” (Alber, 1982). E todas estas situações eram associadas à perda de direitos civis. Zollner (citado por Alber) descreve estes procedimentos repressivos do Estado, no período entre os séculos XVI e XVIII, como uma ênfase de “política social negativa”, cuja intenção primordial era o controle dos pobres e a manutenção da ordem pública. A restauração pós-napoleônica reforçou as normas de controle, temporariamente atenuadas pelo absolutismo iluminado e pela Revolução Francesa. Mesmo porque o sistema de valores associados ao liberalismo emergente refutava a idéia de que a assistência aos inativos fosse um dever social. Somente na segunda metade do século XIX ocorre uma reforma de legislação sobre a pobreza, na qual gradualmente se abriga o controle repressivo, enquanto se acentua o direito individual à prestação. É durante este período que na Europa Ocidental têm origem os sistemas de segurança social, nos quais a forma originária de previdência coletiva – por intermédio do socorro mútuo e da obrigação de proteção a cargo dos patrões – e a assistência pública se fundavam, pela primeira vez, numa sociedade coletiva eficaz (Alber, 1982). No mesmo texto, Alber indica ainda que, no final do século passado, todos os Estados instituíram sistemas próprios segundo o princípio causal, ou seja, criando programas que se diferenciavam segundo a causa que estava na base da perda de rendimentos. De um modo geral, foram estabelecidos quatro sistemas: seguros contra acidentes, contra doenças, contra o desemprego e o sistema de aposentadorias, que incluiu a velhice, a invalidez e a morte do arrimo de família. Assim, antes da Primeira Guerra Mundial, quase todos os países europeus já dispunham de pelo menos três sistemas, com muito poucas exceções. Quais são as diferenças entre estes sistemas nascidos entre 1885 e 1915 e os sistemas precedentes? Ainda com Alber (1982) podemos descrevê-las: • trata-se de sistemas regulados por normas nacionais; • as prestações por eles distribuídas com o objetivo de garantir rendimentos cobririam riscos padronizados tais como acidentes, doenças, velhice, morte ou desocupação dos segurados; • seu campo de aplicação não foi limitado a categorias profissionais isoladas, mas dependiam de critérios mais gerais de rendimento ou status ocupacional que consentiam, como norma, a cobertura de faixas mais amplas de pessoas; • sua natureza foi obrigatória, o que implicou a imposição de seguro para determinados grupos, ou ainda, a obrigação dos poderes públicos financiarem programas voluntários; • seu financiamento ficou a cargo, além dos segurados, do Estado ou dos patrões, e em muitos casos, do Estado e dos patrões; • reconheceram o direito subjetivo individual às prestações e sua fruição não comportou nenhuma discriminação política. O período imediatamente anterior a estas transformações radicais no âmbito dos sistemas de proteção social foi marcado por alguns processos de grande importância: o crescimento demográfico e a industrialização que tiveram grande impacto nas condições de vida no período, especialmente para as classes trabalhadoras. Quanto à questão demográfica, basta dizer que, ao atingir seu auge, na segunda metade do século XIX, num período variando entre 50 e 80 anos, em quase todos os países da Europa Central, a população duplicou. O superpovoamento dos campos teria como contrapartida a migração para as cidades. No final do século, a concentração urbana atingiria 25% em todo o continente. Isto significou uma revolução nas necessidades de segurança das populações citadinas. Em primeiro lugar, tornando crônicos e agravados os chamados problemas urbanos, tais como saneamento, higiene etc. Em segundo lugar – e isto é de extrema importância – abriu-se espaço para uma nova forma de sociabilidade, impessoal e desarraigada das instituições tradicionais, como a família, a vizinhança, os laços corporativos. Gerou-se, portanto, uma grande debilidade nos vínculos de proteção social vigentes até então. Desmoronavam-se o parentesco e a assistência mútua, típicas das pequenas comunidades rurais. Tais mecanismos de solidariedade social desapareceram no meio urbano onde a perda do emprego e dos rendimentos se constituía em dramáticas situações de pobreza e desamparo. Haveria outros problemas, referidos à própria natureza do processo de industrialização, que se juntariam aos já apresentados. Em primeiro plano, cabe ressaltar aqueles decorrentes da própria natureza do trabalho industrial, diversa dos processos dominantes anteriormente, como o trabalho agrícola e artesanal. A introdução de técnicas mecanizadas, substituindo as atividades manuais, faria com que os riscos de acidentes aumentassem demais, expondo os acidentados ao desemprego, à invalidez e, sempre, à perda de rendimentos. Depois, as formas vigentes de utilização intensiva da força de trabalho, com a aceleração dos ritmos e a máxima utilização do tempo, com poucas jornadas de repouso, aumentavam as chances de um exaurimento precoce das capacidades individuais de trabalho. Além disso, deve ser mencionado o surgimento de inúmeras doenças profissionais que contribuíam para esta exaustão, gerando, paralelamente, a perda parcial ou total da capacidade laborativa. Embora no período fossem encontradas normas de proteção ao trabalhador, estava muito agravada a situação das famílias operárias, que diante de todas estas vicissitudes não poderiam contar senão com as poucas chances de proteção que, na maior parte dos casos, não iam além da pessoa do trabalhador. Também, a natureza jurídica dos contratos de trabalho sob o capitalismo revelava um dos traços mais problemáticos das novas formas de sociabilidade, fundadas nas relações individuais: à instabilidade no emprego, causada pelas oscilações dos mercados, juntava-se a questão dos níveis salariais, que muitas vezes não faziam frente às necessidades básicas do trabalhador e de sua família. Todos estes pontos conformariam aquilo que foi chamado de “questão social”, numa clara eferência à consciência coletiva que não mais atribuía tal situação aos desempenhos individuais, mas se referia e constatava a gravidade dos problemas emergentes do novo quadro econômico-social. Também a democratização do direito de voto faria que as necessidades das classes trabalhadoras, sempre relativas à sua segurança social se tornassem uma questão política central neste contexto. Com pequenas restrições de pouca relevância, o direito de voto já estava generalizado por toda a Europa antes da Primeira Guerra Mundial. Assim sendo, e assinaladas as diferenças nacionais e temporais da constituição dos direitos políticos, do processo de desenvolvimento econômico e dos processos de modernização verificados, pode-se dizer que – no caso da montagem dos vários sistemas de proteção social europeus – a variável historicamente crucial foi a mobilização dos trabalhadores em relação com os contextos político-institucionais circunstantes (Ferrera, 1984). Seja no plano da constituição e consolidação dos movimentos sindicais, seja no plano da constituição e crescimento dos partidos operários, esta organização está na base da criação de sistemas de seguros obrigatórios, embora, nos diferentes casos, tenha trilhado percursos diferentes. Neste caso, a combinação de princípios – às vezes contraditórios – de segurança e igualdade sociais foi feita através de processos político-sociais de natureza própria, que foram na literatura relacionados à existência de regimes parlamentares, à limitação do sufrágio, à presença de monarquias constitucionais e ao surgimento de democracias de massa. A combinação destes fatores em torno daqueles princípios e das necessidades de segurança, da forma em que foram expressas nos diversos contextos, produziria sistemas diversos, mais ou menos integrados, mais ou menos planificados, com perfis burocráticos e institucionais próprios e com graus de generosidade e participação também diferenciados. Como pano de fundo deste contexto, estava uma mudança nos modelos de interpretação da realidade social, que passava a assentar-se sobre quatro fórmulas: secularização (laicização), racionalização, individualização e politização. Os momentos históricos da Reforma, do Iluminismo e da Revolução Francesa produziram importantes efeitos sobre as concepções e as formas de proteção social. No caso francês, a Constituição de 1793 já incluía um princípio, em virtude do qual “a sociedade é responsável pela manutenção de seus cidadãos desafortunados, aos quais deve prover trabalho ou conceder meios de subsistência, quando inabilitados.” Embora este princípio não tenha tido aplicação imediata, possibilitou uma capacidade de reinterpretação das relações sociais. Também o Estado passava a ser visto como representante da nação, e a ele era atribuída a tarefa de promover ativamente o bem-estar do cidadão: “Assim, a emergência social adquiria uma dimensão política” (Alber, 1982). Entretanto, nos primeiros anos do século XIX, a questão social ainda era vista como algo ligado ao desenvolvimento da economia, que poderia ser o fato gerador do bem-estar. Porém, gradativamente estes dois aspectos (desenvolvimento e bem-estar) foram se dissociando e a atenção passou, pouco a pouco, a se concentrar na segurança do rendimento das pessoas. Este foi o ponto de mobilização social e política dos trabalhadores. Na Grã-Bretanha, depois da instituição do direito de associação em 1824, as organizações sindicais tiveram sua expansão e, em 1868, já estavam unidas em uma federação nacional. Entre 1860 e 1880, o movimento sindical se estendeu a todo o continente, com uma gradativa mas persistente onda de crescimento desta forma de organização. No final do século já haviam conseguido a legalização do direito de greve, e a Europa vivia uma explosiva situação de conflitos de natureza industrial. Os últimos cinqüenta anos deste século viram o desenvolvimento e a expansão impetuosa e generalizada destes sistemas, especialmente após a Segunda Guerra Mundial. Depois deste evento, sem dúvida, houve grandes avanços nas formas de proteção e na qualidade desta proteção. Guardadas as diferenças, deve ser registrada a generalizada convergência dos níveis de proteção e solidariedade social ofertados pelos Welfare State europeus. Modelos de classificação Existe hoje uma rediscussão dos modelos de classificação dos Welfare State. Depois de um período de mais de vinte anos durante o qual reinou absoluta a classificação de R. Titmus, algumas propostas de alteração foram apresentadas. Inicialmente de modo tímido, mas não sem importância para o esforço classificatório, seriam dados passos importantes para a interpretação, especialmente para aqueles casos considerados “desviantes” face ao modelo inicial. A proposta de Titmus previa três gêneros de Welfare State: • Welfare State residual (The residual Welfare model), caracterizado por políticas seletivas, realizadas quase sempre a posteriori, quando os “canais naturais” e tradicionais de satisfação de necessidades não resolvessem determinadas carências e exigências dos indivíduos. A intervenção possuiria então um caráter temporalmente limitado e deveria cessar com a eliminação da carência social. As políticas desenvolvidas sob este modelo (seletivas) seriam sempre dirigidas a grupos sociais particulares e referidas a certos tipos de riscos ou privação. • Welfare State meritocrático-particularista (The industrial achievement performance model), que seria o modelo fundado nas capacidades individuais de performance, tais como as relativas à produtividade e à capacidade de ganhos individuais. Assim, as políticas sociais deveriam apenas interferir para a correção de certas falhas do mercado que, eventualmente, se tornassem obstáculo para os indivíduos resolverem suas necessidades. “Por importante que seja, o sistema de Welfare é tão somente complementar às instituições econômicas.” • Welfare State institucional redistributivo (The redistributive model). Neste modelo, por fora do mercado, estão garantidos a todos os cidadãos os direitos e as prestações relativas ao bem-estar em termos de patamares mínimos de renda ou serviços, sejam estatais, seja por meio de instituições com fundos repassados pelo Estado. Estudando o caso italiano, Ugo Ascoli avalia a contribuição de Titmus procurando adaptá-la para melhor enquadrar seu objeto e levanta a hipótese de que “o sistema italiano de Welfare, ainda que respeitando as principais diferenciações criadas no mercado e, portanto, aproximando-se do modelo meritocrático-particularista de Titmus, tende a subordinar os principais mecanismos públicos de distribuição de recursos à lógica clientelista inclusiva que parece regular o sistema político”. Aqui, Ascoli nos remete diretamente às práticas clientelistas do sistema político italiano e propõe, para o modelo em pauta, duas sub-espécies: a particularista clientelar e a particularista-corporativa. A classificação de Titmus baseia-se em duas grandes categorias de variáveis: de um lado, a relação Estado versus mercado (ou seja, o distanciamento entre as garantias e as prestações de Welfare e o mercado) e os grupos e os estratos destinatários destas garantias e prestações – se muitos, se poucos, se todos..., (Draibe & Aureliano, 1989). Ascoli, por sua vez, introduz, no caso do modelo meritocrático-particularista, outra variável que seria o modo pelo qual se distribuem garantias e prestações, dada uma certa fragmentação institucional que, por sua vez, estaria subordinada à lógica de uma dinâmica clientelista. Algumas das observações de Ascoli demonstram um certo esquematismo na proposta de Titmus, quanto ao seu poder explicativo. Outras observações também podem ser adicionadas: Por outro lado, o modo como, dicotomicamente apresenta-se nesta tipologia o duplo residual versus institucional, não permite captar os mix históricos em que comparecem diferentemente os pesos relativos do Estado, do mercado e do que vem sendo chamado de o ‘terceiro setor’ na organização mais geral da proteção social (...) Outro plano de discussão desta tipologia diz respeito à sua pequena capacidade de apreender as relações entre o perfil da proteção social e a dinâmica do sistema de interesses e do sistema político (Draibe & Aureliano, 1989). São críticas pertinentes. E a preocupação de Ascoli parece que vem na direção de, corretamente, incorporar estas variáveis na configuração institucional dos sistemas de Welfare. Tal como a operação analítica realizada por Ascoli, outras tentativas foram feitas no sentido de aumentar a capacidade explicativa do modelo de Titmus. Relatadas por Ferrera (1990), outros critérios foram introduzidos, num esforço de “sintonia fina”. Assim, critérios tais como a estabilidade e robustez dos direitos civis, a fragmentação social e institucional, a generosidade nas prestações, a estrutura das prestações e a presença do Estado (Stateness), foram utilizados para estudos de caso e para comparação, e obteve-se um relativo sucesso em termos de superação do esquematismo apontado, abrindo campo para que os outros sistemas fossem estudados e “enquadrados” com maior precisão. Aumentaram, assim, as chances positivas de comparação entre os diferentes modelos. Estas operações e novos estudos realizados possibilitaram o surgimento de subespécies nos modelos meritocrático-particularista e institucional-redistributivo. Sintetizados na Figura 4, estas inovações foram baseadas em novos critérios tais como: fragmentação social e institucional no interior dos sistemas, stateness (que indica a maior ou menor presença do Estado nos mecanismos de seleção e distribuição das prestações); e a generosidade e qualidade dos benefícios distribuídos. No que diz respeito aos critérios de fragmentação social e institucional, a maior ou menor presença de mecanismos políticos de captura de benefícios públicos e a natureza destes mecanismos possibilitaram identificar, no modelo B, como já vimos, duas subespécies: a clientelista e a corporativa. No que diz respeito a stateness, a presença maior ou menor do Estado na condução e definição de programas permitiu identificar uma subespécie de caráter marcadamente estatal-burocrático, como no caso de França e Alemanha, e outra com fortes fundamentos confessionais ou partidários na conformação dos sistemas de Welfare, como nos casos de Itália e Holanda, embora este último apresente características muito particulares. Tomando como critério a generosidade e a qualidade das prestações e serviços, no interior do modelo C, chegou-se a uma discriminação de outras subespécies diferenciadas pela, digamos, intensidade de seu universalismo (mínimo ou máximo). Ocorrerá, no caso inglês, um universalismo mínimo, uma vez que, dado um padrão de generosidade/qualidade, as prestações em nível mais elevado deveriam ser procuradas no mercado pelos próprios segurados, por meio de mecanismos de Professional Welfare, ou ainda dos ganhos permitidos por medidas de Fiscal Welfare. Noutro pólo desta distinção, num padrão de universalismo máximo, estariam os países escandinavos, onde se verifica um elevado padrão de qualidade e generosidade nas prestações públicas, evitando qualquer tipo de dualismo no sistema de Welfare. Isolou-se assim uma subespécie “britânica”, oposta a outra, “escandinava”, no interior do modelo C. Todas estas contribuições parecem ter aumentado o poder classificatório da proposta de Titmus e isto se deve à multiplicação dos estudos comparados no campo do Welfare State. Mas a pesquisa e a proposição de novos modelos não se esgotariam por aqui. Em 1990, G. Esping-Andersen apresentou em seu livro The three worlds of Welfare capitalism uma tipologia dos diversos regimes de política social, com o intuito de acomodar, comparativamente, em clusters (grupos relativamente homogêneos) bem identificados, todos os países da OCDE. Reconhecendo a dificuldade das classificações puras e definitivas – daí a idéia de clusters – este autor propôs os seguintes agrupamentos: liberal, conservador-corporativo e social-democrata. No primeiro, a hegemonia social da burguesia empresarial e a predominância dos valores liberais centrados na iniciativa privada e na ética do trabalho obstacularizaram o reformismo social e encorajaram soluções mercantis também como resposta às necessidades de proteção.” “No agrupamento conservador-corporativo, a hegemonia burguesa vem conjugada à tradição estatalista, à doutrina social da igreja e à articulação por categorias do corpo social, promovendo a expansão de programas generosos, com efeitos redistributivos negligenciados. No terceiro regime (social-democrata) finalmente, a hegemonia social-democrata produziu a expansão de um Welfare State apoiado na intervenção pública em substituição tanto do mercado quanto da família, e dirigido à promoção de uma igualdade de padrões mais elevados; garantindo a toda a população o acesso a prestações de bens e serviços de alta qualidade e alto nível. Enquanto no primeiro regime as classes médias ficam fora do sistema (uma vez que este se dirige apenas a grupos em situação de riscos comprovados, means tested), no segundo têm direito a prestações diferenciadas de melhor nível; no regime social-democrata estas são incorporadas internamente ao esquema universal que distribui a todos as mesmas prestações (Ferrera, 1992). O critério fundamental de agrupamento utilizado por Esping-Andersen é o do grau de desmercantilização, ou seja, a medida em que os sistemas subtraem o trabalhador/cidadão da dependência do mercado. Os países e clusters estariam dispostos em um continuum de desmercantilização que seria baixa no modelo liberal, intermediária no conservador-corporativo e alta no social-democrata. Além do critério de desmercantilização o autor emprega um segundo critério empírico chamado de “princípio de estratificação” no qual seis atributos político-sociais dos sistemas de Welfare são combinados: • grau de corporativismo (fragmentação institucional do sistema); • grau de “estatalismo” (percentual das despesas para prestações aos empregados públicos); • grau de residualismo (percentual das despesas para means tested); • grau de privatização (percentual da despesa privada para aposentadoria, pensões e saúde); • grau de universalismo (percentual da população assegurada nos sistemas existentes); • diferencial de prestações (amplitude de variação entre as prestações mínima e máxima possíveis). Em suma, não há um e sim vários arranjos possíveis de Welfare State, que se configuraram a partir de circunstâncias históricas e lutas políticas particulares a cada nação. De qualquer modo, os critérios de classificação e avaliação dos sistemas de proteção social visam explicitar limites e virtudes dos vários modelos, assim como permitir uma comparação entre eles. Além disso, pode-se associar arranjos particulares com matrizes político-ideológicas claramente distintas, o que em última instância conduz à constatação de que os sistemas de proteção social são produtos e, ao mesmo tempo, elementos estruturantes da vida social moderna.

Políticas públicas e política social

O objetivo do presente texto é de natureza didática e conceitual. Levou-me a escrevê-lo uma série de indagações (e por vezes, confusões) que verifiquei na área acadêmica, seja durante cursos que ministrei sobre esses temas, seja nas discussões, seminários e outras atividades coletivas das quais participei nos últimos anos. Pretendo, pois, fazer uma distinção entre os dois conceitos e, na medida do possível, estabelecer algumas relações entre eles. No que diz respeito ao entendimento do conceito de política social, tratarei também de comentar um certo reducionismo que vem acometendo o uso do conceito, que, a meu ver, tem importantes conseqüências políticas. O QUE SÃO POLÍTICAS PÚBLICAS? Para efeitos didáticos, vamos adotar, de modo preliminar e provisório, uma definição minimalista das políticas públicas: são intervenções planejadas do poder público com a finalidade de resolver situações problemáticas, que sejam socialmente relevantes. Há, portanto, nessa definição, três expressões carregadas de significados. São elas: intervenções planejadas, poder público e situações problemáticas socialmente relevantes. No que diz respeito à primeira expressão, a existência de uma política pública pressupõe a existência legitimada de uma capacidade mínima de planificação no aparelho de Estado, seja do ponto de vista técnico, (capacidade de gestão, em sentido amplo), seja do ponto de vista político (legitimidade). No que diz respeito à segunda expressão (poder público), sua existência dependeria, também, de uma estruturação republicana da ordem política vigente, ou seja, coexistência e independência de poderes e vigência de direitos de cidadania. Esse elemento “componente” da definição tem extrema importância para a consideração da terceira expressão, uma vez que a identificação e a delimitação daquilo que é socialmente relevante, dependem de uma certa capacidade coletiva de formulação de agendas públicas. Depende, também, da existência de um estado com capacidade de resposta a demandas sociais (responsiveness), da formalização e da institucionalização dos direitos de cidadania; e da existência de uma cultura política compatível com tais princípios. Mas é necessário passar além da definição minimalista. Certamente, ela serve de base para a elaboração um conceito, se enquadraria no que Max Weber chamou de tipo conceitual, ou seja, uma ferramenta necessária, mas não suficiente, para compreensão da realidade.Na construção da teoria, o tipo conceitual tem a finalidade de agregar o maior conjunto possível de aspectos que conformam o objeto.Nesse sentido, a própria metodologia weberiana indica a necessidade de construção – em paralelo - de um tipo histórico. Isso implica, no caso das políticas públicas, entendê-las como resultantes de um processo histórico, no interior do qual constituiu-se uma forma específica de exercício do poder político nas sociedades democráticas contemporâneas. Em outras palavras, a forma “política pública”, constitui-se numa modalidade particular de intervenção estatal, fundada, de um lado, num acervo de conhecimentos técnicos sobre a realidade social e, de outro, num conjunto de formas variadas de interação com a sociedade. É necessário, portanto, tentar reconstruir esse processo. Essa modalidade de exercício de poder nas democracias contemporâneas resulta de múltiplas determinações, de um amplo conjunto de fatos históricos, de natureza e temporalidades distintas, que foram modelando e institucionalizando um padrão de ação do Estado. Tal modalidade, plenamente difundida em nossos dias, combina um grande aumento do número de intervenções do estado, no bojo das quais se desenvolve um conjunto de sistemas de informações sobre a vida econômica e social, que se combina com a constituição de um considerável acervo de técnicas de planejamento, e instrumentos legais de intervenção. A isso, se agrega também, no âmbito da sociedade, um novo padrão de participação política e social, bem como uma nova institucionalidade que dá suporte aos direitos de cidadania, aqui entendida na acepção de Th. Marshall2, com seus componentes civil, político e social. Uma visão histórica A expressão políticas públicas parece ter entrado definitivamente no vocabulário contemporâneo. Sua presença constante na imprensa, nas agendas públicas, nos documentos públicos e não-governamentais, nos pronunciamentos políticos, nas pautas de movimentos sociais, revela uma avassaladora presença do tema na vida cotidiana dos países democráticos. Em minha opinião tal importância se deve, pelo menos, a quatro fatores marcantes: 1. um fator de natureza macro econômica Após a segunda guerra mundial, a constatação de que o livre jogo das forças de mercado não tinha levado à paz, à prosperidade e ao bem estar, generalizou-se por quase todo o mundo capitalista. Esta foi uma das razões pelas quais houve uma grande mudança nas políticas econômicas adotadas pelos estados capitalistas que, até então, estavam, com maior ou menor força, fundadas em preceitos do liberalismo econômico. A adoção de políticas keynesianas, centradas na idéia de pleno emprego, faria com que esses estados nacionais passassem a ampliar o volume de suas intervenções e seu caráter regulador, tanto nos aspectos econômicos, como por exemplo, na produção de bens e serviços, quanto nos aspectos sociais da vida coletiva, como por exemplo, a institucionalização de sistemas de proteção social. Tais políticas manteriam um fôlego de várias décadas, chegando o período a ser conhecido como “os trinta anos dourados”.Somente nos anos 80 do século passado é que tais políticas seriam colocadas em questão, quando passam a serem difundidos e aceitos os cânones do credo neoliberal. 2. um fator de natureza geopolítica A partir desse momento, a presença das idéias neoliberais nas políticas econômicas e sociais, torna-se praticamente dominante, e esse fato tem uma estreita relação com o fim da bipolarização entre os blocos capitalista e socialista. No segundo pós-guerra, ocorreu uma forte tensão geopolítica entre os mundos socialista e capitalista. As sociedades capitalistas européias foram as que vivenciaram tal polarização de modo particularmente dramático. Em quase todas elas o período revelou uma presença muito marcante de partidos políticos de inspiração comunista, socialista ou trabalhista, o que representava do ponto de vista dominante uma perigosa clivagem política interna, agravada pela virtualidade de um modo de organização social alternativo, vivido no bloco socialista. Vislumbrou-se, assim, a necessidade de que fossem estabelecidos novos princípios e novos pactos nas relações entre capital e trabalho. A oferta de serviços de natureza social que, mesmo assumindo feições diversas no seu conjunto, foi ampliada e a presença do estado nesse campo de atividade, estabeleceu a base para a constituição dos modernos sistemas de proteção social, dos quais os casos mais conspícuos foram os Welfare States europeus. 3. um fator de natureza política O período compreendido entre o segundo pós-guerra e os dias atuais, embora apresentando alguns momentos de retrocesso, foi um momento de consolidação das democracias ocidentais. Objetivamente foram ampliados os campos de representação política, configurado na participação sindical e partidária, no direito de voto, na participação em movimentos sociais e em novas formas se associação voluntária.Tais mudanças produziram uma nova concepção das sociedades sobre o estado. Para muitos segmentos da sociedade, o estado verdadeiramente democrático passa a ser visto, não apenas como aquele que inclui mecanismos clássicos de representação (direito de votar e ser votado; participação igualitária de classes, categorias e interesses), mas também aquele que revela uma certa capacidade de resposta (responsiveness) às demandas da sociedade . Este argumento, se tomado conjuntamente com as observações anteriores, mostra que o crescimento da presença das políticas públicas na vida cotidiana, não se dá simplesmente pela ampliação da ação do Estado, mas também pelas exigências que lhe são colocadas pela sociedade. O ponto seguinte completa o raciocínio. 4. um fator natureza cultural e sociológica Maurizio Ferrera, em seu livro Modelli di Solidarietà, relata duas situações emblemáticas para a compreensão dos fenômenos que tentaremos descrever. Em 1908, o Governo Ingles atribuiu uma pensão de cinco xelins para pessoas idosas. Era um programa que hoje chamaríamos de transferência de renda. Semanalmente, os idosos dirigiam-se às agências de correios para retirar seu benefício. Muitos deles não conseguiam entender aquilo como uma ação do estado. Pensavam ser resultado da generosidade pessoal do agente postal, a quem retribuíam com cestos de maçã, ovos, patos ou gansos. Na Itália, em 1993, o governo tentou retirar uma parte dos benefícios para medicamentos aos quais os idosos tinham direito. Houve uma verdadeira comoção nacional, com a união das centrais sindicais, passeatas, protestos e, por fim, o apedrejamento, pelos idosos enfurecidos, de alguns líderes sindicais, que foram considerados “frouxos” na negociação com o governo. O que se passou nos 85 anos que separam um episódio do outro? Se concordarmos com Eric Hobsbawn, devemos aceitar que o século passado foi o século dos direitos sociais. Nesse período consolidaram-se os direitos de cidadania em sua plenitude, ao mesmo tempo em que passam a ser percebidos e entendidos, no conjunto da sociedade , como jus, como algo que legitimamente pertence a alguém. Não podemos esquecer que, particularmente após a Segunda Guerra Mundial, processos extremamente impactantes ocorreram nas sociedades ocidentais: uma significativa transformação demográfica, um expressivo processo de urbanização, uma forte expansão e grandes transformações tecnológicas no campo das comunicações, redefinições e expansão dos sistemas educacionais, secularização crescente da vida coletiva e, sobretudo, e uma verdadeira revolução no modo de vida, que muitos autores já descreveram como a constituição da “sociedade de consumo de massas”. Provavelmente instaurou-se uma situação, no plano sócio-cultural, que foi descrita por Daniel Bell, como a “revolução das expectativas”, na qual os diversos grupos sociais, instituições ou mesmo indivíduos, investidos no papel de atores sociais, progressivamente mais conscientes de suas necessidades e carências, passam a agir politicamente, de formas às vezes mais, às vezes menos organizadas, a partir da idéia de um binômio direito/demanda, que pressupõe, sempre, a ação do Estado. Dentre outros, os fatores acima descritos concorreram para que as intervenções do Estado fossem sendo modeladas por essa pluralidade de atores, de origens e natureza diversa e portadores de interesses específicos (congruentes ou contraditórios). Ao longo do tempo, nesse contexto de interações, desenvolveram-se padrões e exigências de conhecimentos técnicos específicos de intervenção, ao mesmo tempo em que as relações entre o Estado e esse cast foram se institucionalizando, criando pautas de conduta política, regras e padrões que modificaram os processos decisórios tradicionais, dando origem a essa forma nova, contemporânea, mais partilhada, de exercício do poder. Tais considerações de natureza histórica iluminam e ampliam visão minimalista sobre as políticas publicas, adotada no início do texto. A introdução de uma perspectiva que considere essa historicidade, também é importante para compreender não apenas a natureza do fenômeno estudado e seu conceito, mas também a evolução dos estudos das políticas públicas nos últimos 50 anos. Desse ponto de vista, parecer ser interessante fazer algumas considerações sobre dois pontos importantes: os estudos em si e, em seguida, considerar tais estudos no contexto das culturas nacionais no interior das quais são realizados. A autonomização dos estudos de políticas públicas Embora os estudos das intervenções do Estado tenham se difundido pelos países mais importantes do capitalismo central é necessário frisar que os pioneiros foram os cientistas políticos norte-americanos. E naquele país, os estudos anteriores aos anos sessenta, tiveram duas marcas muito claras: em primeiro lugar, estão muito influenciados pelo ethos pragmático da cultura norte-americana em geral e de sua cultura política, em particular. Durante a segunda guerra, nesse espírito pragmático, os cientistas sociais tinham colaborado intensamente no esforço de guerra, por intermédio de pesquisas relativas aos países envolvidos no conflito e mesmo sobre o perfil dos soldados americanos, estabelecendo um estreito vínculo entre governo e cientistas com objetivos de fornecer bases para solução de problemas práticos. No imediato pós-guerra, os estudos de políticas públicas iniciam´se nos Estados Unidos, norteados por esses mesmos princípios, fornecer subsídios para ação dos governos. Em segundo lugar, é preciso apontar que no caso norte-americano existe uma importante peculiaridade lingüística e cultural, quando se trata do tema. Diferentemente do que ocorre com as línguas latinas, e mesmo com a língua alemã, a língua inglesa faz uma distinção entre politics, quando se referem à política, no sentido relativo aos fenômenos do poder (representação política, partidos, eleições, conflitos relativos ao poder, entre outros), e policy (ou policies), para referirem-se adoção de formas de ação, linhas de atuação, que dizem muito mais a condutas eletivas para solução de problemas, que beiram muito mais o campo da administração do que do campo que nós – latinos – entendemos por “político”. Trata-se, na língua e na cultura, de duas realidades distintas, que oferecem mesmo uma certa dificuldade de entendimento para usuários de outras línguas, Quanto a isso, particularmente nos Estados Unidos, existe um certo preconceito quanto às atividades entendidas como politics. Harold Lasswell, considerado um dos grandes nomes da Ciência Política norte-americana escreveu que os policy studies poderiam ajudar a livrar os estudos da “conotação de militância e corrupção” contida no termo politics. É claro que ambos os pontos citados têm importantes conseqüências teóricas para o campo de estudos, sobretudo refletindo-se numa espécie de minimização dos efeitos da política sobre o universo das policies. Num movimento, senão oposto, pelo menos diferente, nos países europeus o estudo das políticas públicas sempre esteve subordinado ao estudo da política, quando não ignorado, sem que ganhasse alguma autonomia entre as várias disciplinas da ciência política, o que viria a acontecer apenas algumas décadas mais tarde (anos 80). Para que se tenha uma idéia das diferenças basta citar alguns fatos sintomáticos.As edições italianas de dois livros clássicos da Ciência Política norte-americana (Poder e Sociedade, de H. Lasswelll e O Sistema Político, de David Eaton), traduzem a expressão public policy, como linha de ação, linha de conduta, ou ainda, linha política. Outra situação curiosa, mas significativa, é que o célebre Dicionário de Política, de Norberto Bobbio, publicada em 1983, não possui o verbete politiche pubbliche. Também o grande cientista político italiano Alessandro Pizzorno usava os termos “Política Absoluta” e “Política Relativa” para referir-se à política e às políticas públicas respectivamente. Talvez esses fatos revelem algum tipo de reserva (ou mesmo, preconceito) contra o tipo de estudos desenvolvidos nos Estados Unidos, particularmente no que diz aos fundamentos teóricos e metodológicos utilizados. De fato, é preciso reconhecer que esses estudos deixaram a desejar em seus resultados, no sentido de trazer à luz as relações complexas entre as formas de intervenção do Estado e as complexas relações que envolvem desde conjuntos diferenciados de interesses, estruturas políticas, ideologias e, por fim, a própria natureza do Estado interventor. Mas é indubitável que, mesmo descontadas as diferenças de enfoques, a forte interferência de culturas políticas nacionais e, mesmo, as diferenças de estilos intelectuais dominantes, o campo de estudo das políticas públicas apresentou uma formidável expansão, ganhando progressivamente, desde os anos 60 até os dias de hoje, sua autonomia como disciplina no interior da Ciência Política .Hoje, dispõe-se de um razoável acervo de conhecimentos que vão desde a construção de tipologias, inovações conceituais, identificação de estruturas, estabelecimento de ciclos e identificação de aspectos normativos. A existência de tal acervo faz com que os estudos de políticas públicas sejam uma sólida base de informações históricas, técnicas e científicas que podem fornecer forte apoio para as intervenções governamentais, gerando uma dialética sui generis, em virtude da qual o conhecimento, ao informar a pluralidade dos atores envolvidos, passa a fazer parte da realidade que se busca conhecer. O que procuramos demonstrar, nessa primeira parte, é que o conceito de políticas públicas é um conceito evolutivo, na medida em que a realidade a que se refere existe num processo constante de transformações históricas nas relações entre estado e sociedade, e que essa mesma relação é permeada pro mediações de natureza variada, mas que, cada vez mais estão referidas aos processos de democratização das sociedades contemporâneas. O QUE É POLITICA SOCIAL? Na visão do senso comum, existe uma tendência a chamar de política social, tudo aquilo que, considerando as necessidades dos cidadãos, não se configura como “política econômica”. Essa oposição entre o “social” e o “econômico”, fruto de uma espécie de “sociologia espontânea”, para usar uma expressão de P. Bordieux tem produzido um grave desentendimento dos dois conceitos. Em primeiro lugar, porque a distinção é errônea, uma vez que ambos os termos da oposição são abstrações de uma mesma realidade social, na qual não há limites delineados de a priori. Em segundo lugar, porque decorre de uma espécie de preconceito que apóia certas correntes de pensamento sobre a sociedade, para as quais, a consideração dos aspectos econômicos dos processos de policy making, não passam de artimanhas de poderosos - em conluio - pela reprodução do capital. Assim sendo, a política social nas sociedades capitalistas seria algo relegado a um plano secundário, mesmo onde impere o regime democrático. Em terceiro lugar, por oposição à postura anterior, uma visão economicista e tecnocrática tende a desconsiderar que, nas sociedades contemporâneas, as “políticas sociais” (vistas como um epifenômeno da política econômica), desempenham um papel econômico, jamais imaginado nas décadas precedentes.Basta fazer uma breve referência ao potencial gerador de empregos das áreas de saúde, educação, previdência, assistência social, para termos uma primeira dimensão dessa importância: provavelmente seja a chamada área de proteção social, seja feita pelo poder público ou pelo setor privado, a atividade econômica que mais gera emprego no mundo contemporâneo. Mas, o que podemos entender por política social? Como o conceito de política social tem um caráter evolutivo, que se define em razão de seus componentes históricos devemos deixar claro que ele se refere às formas de proteção social desenvolvidas a partir da segunda metade do século XIX, embora sua aplicação possa ser referida a períodos anteriores. Sua compreensão está referida a um conceito mais amplo, de sistema de proteção social, que considero um fato social universal, na acepção de Èmile Durkheim, presente em todas as sociedades humanas, organizado em sistemas, entendidos como conjuntos de relações e instituições perfeitamente delimitáveis, conforme os define Niklas Luhman. “Assim, chamo de sistema de proteção social as formas – às vezes mais, às vezes menos institucionalizadas – que as sociedades constituem para proteger parte ou o conjunto de seus membros. Tais sistemas decorrem de certas vicissitudes da vida natural ou social, tais como a velhice, a doença, o infortúnio ou as privações. Incluo nesse conceito também tanto as formas seletivas de distribuição e redistribuição de bens materiais (como a comida e o dinheiro), quanto de bens culturais (como os saberes), que permitirão a sobre vivência e a integração, sob várias formas, na vida social. Incluo ainda, os princípios reguladores e as normas que, com o intuito de proteção, fazem parte da vida das coletividades” . De alguma maneira, seja, através de instituições não especializadas ou com alto grau de institucionalização, as sociedades humanas, mesmo as que apresentam estruturas sociais muito simples, desenvolvem sistemas de proteção social. Por exemplo, em muitas sociedades tribais, a proteção social tem suas bases na família ou no clã, que entre muitas outras funções tem aquela de proteger seus membros em caso de doença, velhice ou infortúnios. Parece existir uma tendência que faz com que, quanto mais a complexa a sociedade, mais especializadas sejam suas instituições, entre elas as de proteção social. Aqueles que podem ser chamados de modernos sistemas de proteção são os que surgiram depois da unificação e da revolução industrial capitalista vivenciada na Alemanha de Bismarck, nos anos 70 e 80 do século XX, e num período de 30 anos entre - 1885 e 1915 - se espalharam pela Europa. Entretanto, suas origens são mais remotas estão ligadas a formas antigas de proteção, distantes da ação dos estados e tinham seu foco voltado para a questão da pobreza. Formas baseadas na tradição, segundo princípios cristãos de caridade e fraternidade, norteavam esse tipo de ação. Quase como exceções estavam as formas de proteção engendradas nas corporações de ofício, que proviam, de alguma forma, apoio seus pares, que porventura, se vissem desvalidos. Apenas na Inglaterra havia algo nitidamente excepcional, já que desde 1573 foi introduzida uma taxa sobre a propriedade fundiária, utilizada para um sistema de assistência aos pobres, sob o controle do estado. Depois, em 1793, foram regulamentadas as atividades das associações de assistência mútua, que no século seguinte se disseminariam por toda a Europa. Mas, de um modo geral, podemos dizer, com M. Ferrera, que “a assistência aos pobres se baseava em intervenções ocasionais, residuais e discrecionais, que eram consideradas como ‘benemerência’ que se concedia às pessoas quase sempre consideradas sem mérito e, assim sendo, comportavam marginalização política e civil dos beneficiários; enfim, a assistência era feita segundo modalidades institucionais indiferenciadas e sobre base prevalentemente local” . Os modernos sistemas foram além da pobreza. Extremamente vinculados os conflitos sociais e à realidade econômica ocorrido do final do século XIX, não poderiam também deixar de estar ligados, em seu desenvolvimento ulterior das formas de cidadania e de sua institucionalização . Diferentemente das formas de proteção precedentes, os modernos sistemas se diferenciavam por algumas características: 1. passaram a ser sistemas regulados por normas nacionais, emanadas pelo estado; 2. as prestações e os benefícios por eles distribuídos cobriram riscos padronizados, tais como acidentes, doenças, mortes ou desocupação dos usuários; 3. seu campo de aplicação (coberturas) não foi limitado a categorias profissionais isoladas, mas dependiam de critérios mais gerais, que progressivamente foram cobrindo faixas mais amplas de pessoas; 4. seu financiamento foi perenizado a partir de contribuições dos usuários (segurados), do Estado e do patronato; 5. sua natureza foi obrigatória, o que implicou imposição de seguros para certos grupos sociais, ou ainda, a obrigação dos poderes públicos de financiarem programas voluntários; 6. reconheceram o direito individual subjetivo aos benefícios e prestações e sua fruição não comportou nenhum tipo de discriminação política. Os sistemas assim constituídos forneceram os alicerces para aquelas formas de proteção social que ficaram conhecidas, no período posterior à Segunda Guerra Mundial, como Welfare States, que floresceram na Europa, em quase todos os grandes países. Como vimos anteriormente, esse florescimento coincidiu com o aumento de volume de intervenções do estado na vida das sociedades, mas, particularmente, pelos fatores também já apontados, o grande fluxo destas intervenções, dessas políticas públicas, dirigiu-se à proteção social dos cidadãos, dando origem ao significado atual da expressão “política social”. Em outras palavras, nessa acepção entende-se por política social o conjunto das políticas públicas, voltadas para o campo da proteção social. “Essas políticas sociais cobrem, de fato, uma vasta gama de diretivas nas quais é possível encontrar ações em matéria de previdência social, em sentido estrito, ou aquelas adotadas em favor de categorias especiais (velhos, órfãos, incapazes, etc), ou ainda as políticas que dizem respeito à habitação, educação, lazer, e assim por diante.” Creio que esta definição, esboçada de modo objetivo ajuda a dirimir uma série de mal entendidos. Política social versus política econômica O primeiro deles refere-se à oposição entre política econômica e política social. A política social não se define por seu campo de decisões, mas por seus objetivos. As decisões tomadas naquela comumente chamada de área econômica, podem estar dando base a uma política social. Do mesmo modo, as decisões típicas do campo da política social podem ter efeitos econômicos consideráveis, como por exemplo, a expansão do emprego no setor saúde, a criação de programas de transferência de renda, as mudanças na política previdenciária, e assim por diante. O segundo refere-se ao uso e à construção de tipologias. Não se podem utilizar as tipologias criadas para o entendimento da natureza das políticas públicas para classificação das políticas sociais. Tomemos por exemplo a célebre e exaustivamente usada tipologia de T. J. Lowi, que divida as políticas públicas em quatro tipos, a saber: “a) políticas distributivas, que fornecem benefícios precisos a grupos sociais ou territoriais bem delimitados. Sem nenhuma ligação direta e explícita com os custos, que recaem sobre a coletividade inteira através da arrecadação fiscal (...) b) políticas redistributivas, que oferecem benefícios a largas camadas sociais e que, portanto, comportam custos sensíveis, que são, por sua vez, divididos com outros amplos grupos sociais(...) c) políticas regulatórias, que condicionam os comportamentos de certas categorias, impondo o respeito a códigos, standarts de prestações, vínculos com a livre iniciativa (...)) d) políticas constitutivas, que estabelecem procedimentos para a adoção de decisões públicas e relações entre os vários aparatos do estado”. Ao desenvolver tal tipologia a intenção de Lowi foi estabelecer uma espécie de análise topológica das arenas de decisões (a cada tipo corresponderia uma arena), das redes de atores e de estruturas de processos de decisão. Assim sendo, nada nesta tipologia leva a estabelecer que certos tipos se referem às políticas sociais e outros às políticas econômicas. Como já dissemos tudo depende dos objetivos visualizados nos projetos de políticas públicas, embora os efeitos possam, muitas vezes, extravasar ou ir além dos resultados esperados, produzindo efeitos econômicos, políticos, culturais, etc. Outro desentendimento importante refere-se a uma espécie de reducionismo que vem ocorrendo recentemente, em virtude do qual confundem-se as idéias de política social e de política de assistência social. Se formos fiéis ao conceito de proteção social esboçado anteriormente, devemos reconhecer que a política social, no mundo contemporâneo tem um “núcleo duro”, historicamente constituído, que engloba, pelo menos as políticas de emprego e renda, de previdência, de saúde, de educação e de assistência social. Tal núcleo, dependendo dos países em que ocorre, pode ser alargado para incluir as políticas habitacionais ou outras que local e tradicionalmente ganham relevância e recorrência histórica. Em muitas sociedades, o conjunto de políticas públicas relativas ao núcleo duro implicou um processo de mercantilização (ou mercadorização) de benefícios e serviços. Isso ocorreu, de um lado, pelo modelo de proteção social adotado, particularmente, naqueles conhecidos como liberal ou residual; e, de outro, nos regimes mistos, no quais os benefícios e prestações dependem de compra pura e simples, ou ainda de um sistema com base em contribuições ou seguros. Estas formas produziram um efeito ideológico, pelo qual, somente são consideradas como política social, aquelas intervenções de políticas públicas totalmente realizadas pelo estado, ou por organizações do terceiro setor dedicadas, de forma explícita ou implícita, ao atendimento de segmentos mais pobres da população. Ao contrário, pelo mesmo efeito, as demais formas, realizadas através do mercado, não são consideradas como política social. O reducionismo promove uma identificação da política social com política para pobres . Como não poderia deixar de ser, isso tem sérias conseqüências políticas, uma vez que representa a fragmentação institucional no campo da política social e a desagregação de seus princípios integradores. Assim sendo, a proteção social passa a ser implementada obedecendo prioritariamente outras lógicas (acumulação de capital ou acumulação de poder político) que se sobrepõem àquela da reprodução social sob a égide do bem estar, como direito de cidadania. Considerações finais Dentro de um raciocínio sistêmico, podemos dizer que a demanda por serviços de assistência social é inversamente proporcional à oferta de bens e serviços das demais áreas componentes do “núcleo duro” da proteção social, principalmente das áreas de emprego e renda. O predomínio, no campo da política social, de políticas públicas orientadas para o mercado, conforme procuramos descrever anteriormente, inevitavelmente conduz ou reforça o dualismo social. No caso brasileiro, e em muitos outros países, a demanda por políticas de assistência social – e por um certo tipo de serviços de assistência social, que é aquela de assistência à pobreza - assumiu um caráter estrutural devido a um conjunto de fatores, tais como, o padrão de distribuição de renda, as desigualdades regionais e os mecanismos sempre atualizados de discriminação e exclusão. Ao mesmo tempo, a lógica de mercado torna a proteção social inacessível para grandes faixas da população, gerando e cristalizando, no interior da sociedade, um conjunto de interesses que cada vez mais enrijecem a estratificação social vigente, impedindo o surgimento de políticas públicas que, se não levam em direção ao universalismo, levem, pelo menos, a uma política social mais solidária.

A dissidência do Homo Sapiens

O grande ensaísta Terry Eagleton, da Universidade de Manchester, disse em algum momento que a principal característica dos radicalismos contemporâneos é a ignorância. Os radicais de hoje desconhecem por completo a história dos movimentos sociais do passado, seja do ponto de vista sua inspiração (libertária ou autoritária), seja do ponto de vista de seus métodos (pacifismo ou a violência), ou seja, ainda, do ângulo de sua pertinência ao campo do estado democrático (legal ou ilegal). Isso parece ser verdade. Se nós procurarmos entender o que vem se passando com o recente surto de invasões de unidades universitárias, vamos nos deparar com um universo caótico de práticas, violências e discursos que acabam sempre se negando uns aos outros.Se tal discurso – nem sempre coerente – reveste-se de elementos libertários, como a autonomia universitária e a democratização dos processos decisórios, contraditoriamente, a prática verdadeira é a violência facista: arrombamento de portas e instalações, impedimento da locomoção de pessoas, violação do direito de trabalhar e estudar, profanação do espaço institucional com festinhas regadas a álcool e infladas por outros odores. O conjunto todo emite ainda uma simbologia sombria. Quem viu as fotos da primeira invasão da Reitoria da UNICAMP e deparou com pessoas encarapitadas nos telhados, com máscaras improvisadas com camisetas, não saberia distinguir um ato “estudantil” de uma rebelião de presídios, pois o efeito estético é exatamente o mesmo. E talvez a retórica também o seja, na medida que sua conotação revela uma espécie de marginalidade voluntária, assumida por grupelhos políticos, às vezes mais, às vezes menos organizados, que se recusam ou não conseguem – por pura ignorância ou também por burrice – adentrar ao universo do diálogo democrático, regrado por normas institucionalizadas de convivência, fruto de um longo processo civilizatório. Entretanto, por princípio, é sempre necessário compreender os radicalismos. Muitas vezes eles surgem, por falhas institucionais que não permitem a expressão das demandas geradas na dinâmica da vida social e dos processos políticos, alijando grupos e comunidades das possibilidades de participação cidadã. Outras vezes, são respostas a situações autoritárias que se sobrepõem às regras institucionais. Não parece ser esse o caso das universidades paulistas, que vem aperfeiçoando nas últimas décadas seus arranjos institucionais e suas formas internas de participação política, seja pela via de seus órgãos diretivos ( departamentos, congregações, conselhos,,entre tantos outros), ou seja pela via associativa ( associações de docentes, sindicatos e diretórios estudantis). A institucionalidade de nossas universidades nos dias de hoje permite que todas as questões sejam solucionadas dentro da legalidade, da legitimidade e das boas práticas da sociabilidade política democrática. Mas como então explicar tal surto de radicalismos? De um lado, trata-se de uma profunda ignorância sobre a natureza e os processo de participação política democrática vigente, o que poderia ser corrigido com um bom esforço pedagógico. De outro, trata-se da burrice e oportunismo (dos quais Eagleton não fala) de grupos atavicamente ressentidos, que dentro ou fora das academias, são os perdedores constantes no advento de nossa jovem democracia, Para eles a universidade e seu papel social não importa.O que lhes é caro, além de seus próprios interesses pessoais ou políticos, é a interminável sucessão de confrontos, não com pessoas ou instituições, mas com a democracia. É a dissidência do homo sapiens. - Artigo publicado em 2007 no jornal Correio Popular de Campinas